“Essas pessoas” sou eu

Ontem, escrevendo sobre a Guatemala, eu comecei a pensar sobre como aquele ano que eu passei lá foi o ano em que eu me senti mais livre em toda a minha vida. Enquanto eu escrevia e lembrava de tudo que aconteceu, eu fui tomada por uma sensação de liberdade que eu acho que não sentia desde que eu voltei de lá em 2012.

Estranhei essa sensação de liberdade. Teoricamente eu sempre fui livre, sempre pude escolher onde trabalhar, onde morar, com quem namorar ou casar, o que estudar e tudo mais, nunca fui obrigada a fazer nada, por assim dizer.

Fiquei muito intrigada com meus próprios pensamentos, tentando desvendar esse mistério dessa sensação de liberdade que eu não sentia há muito tempo, apesar de eu sempre ter sido livre.

Voltando àquele tempo, o que me ocorreu é que quando eu fui para a Guatemala, pela primeira vez na minha vida, eu não tinha expectativas e eu sentia que ninguém mais tinha expectativas para mim também.

Explico melhor. Eu fui para um país que eu não conhecia e onde eu não conhecia ninguém, fazer um trabalho que eu não sabia exatamente o que era, em uma ONG que eu nunca tinha ouvido falar. Com tantas variáveis desconhecidas eu simplesmente não sabia o que esperar. Depois de ter dado um tempo no mundo corporativo, em que todo mundo espera que você seja o melhor, seja promovido, tenha um desempenho acima da média, etc e de ter terminado o meu mestrado, onde é esperado que você escreva as melhores dissertações, leia os melhores artigos, estude por horas a fio e tenha as melhores notas, eu estava indo para um lugar em que nada era esperado de mim.

Quer dizer, claro que na ONG eles esperavam que eu fizesse o meu trabalho. Mas até então eu não sabia o que era direito esse trabalho, não sabia se ia dar certo, não sabia se eu ia me adaptar ao lugar, não sabia com quem eu ia trabalhar, não sabia de nada e tudo bem não saber porque eu sempre poderia voltar. E eu acho que essa foi a primeira vez em que eu realmente abracei o desconhecido, me permiti não saber e me permiti não esperar nada de mim, principalmente porque eu nem sabia o que esperar.

E durante esse ano em que eu vivi lá tudo foi muito tranquilo. Quer dizer, claro que eu tive muitos perrengues, mas emocionalmente eu estava bem. Eu me dei a liberdade de viajar sem preocupações, de fazer o meu trabalho sem querer ser a melhor, de me conectar com pessoas que eu achava que não tinham nada a ver comigo, de fazer o que eu queria sem culpa, simplesmente viver da maneira que eu queria viver.

Como eu tinha pouco acesso à internet e redes sociais ainda estavam muito no começo, eu também não sentia necessidade de mostrar para ninguém o que eu estava fazendo. Eu estava em um lugar isolado e ninguém sabia o que eu fazia e isso me fazia sentir mais livre.

Levei isso para a minha sessão de terapia, que agora acontece às quartas a noite. Falei sobre isso mais como uma nostalgia, não estava tentando tirar nenhuma grande lição, mas são nessas horas que as grandes lições sempre aparecem.

Minha psicóloga perguntou quem eram essas pessoas que tinham expectativa em relação a mim, as que eu disse que não tinham expectativas em relação à Guatemala. Fiquei pensando por alguns minutos e cheguei à conclusão que a minha psicóloga já tinha chegado logo que eu contei a história, “essas pessoas” sou eu, “essas pessoas” estão dentro de mim.

Foi mais um choque. Agora falando parece pouca coisa, porque parece que eu deveria ter visto isso há muitos anos, décadas, mas só percebi ontem.

Também contei para ela que agora que a Lara voltou para a creche (faz 2 semanas) e eu não estou trabalhando, eu sinto que eu preciso ser produtiva, preciso limpar, cozinhar, cuidar do jardim, arrumar os armários e coisas assim. E a verdade é que a única pessoa que acha que eu preciso ser produtiva sou eu. Ninguém mais sabe o que eu estou fazendo, ninguém sabe se eu durmo depois do almoço, se eu deito na rede pra ler um livro, se eu fico tomando sol na praia no meio tarde, ninguém, nem meu marido que está trabalhando no escritório dele. A única pessoa que se sente culpada por tudo isso sou eu mesma.

E foi assim que eu descobri que durante a minha vida adulta inteira eu fiz de tudo para atender às expectativas de pessoas que nunca existiram. Não é surpresa que eu não tenha ficado muito tempo em cada emprego, eu não era realmente feliz.

Precisei ficar um ano sem trabalhar para descobrir que ninguém no mundo se importa com as roupas que eu vestia no trabalho, as apresentações maravilhosas que eu fazia, as planilhas cheias de fórmula que eu entregava, com todo o esforço e dor que eu coloquei nesses anos de Recursos Humanos. As empresas me substituíram facilmente, mas eu continuei fazendo aquilo que eu achava que era esperado de mim, que era socialmente aceito, que não era o que eu queria fazer.

Essa ideia de ter um bom emprego, em uma boa empresa, ganhar um bom dinheiro, comprar um bom carro e um apartamento eu realizei, mas descobri que esse sonho não era meu, era o sonho que eu achava que eu tinha que realizar.

Agora estou aqui, aos 41 anos, tentando descobrir qual é o sonho que eu tenho, o que eu quero fazer. Estou tentando reconquistar essa liberdade que eu uma vez tive, em 2011, na Guatemala.

Estou aqui ainda chocada por descobrir que “essas pessoas” sou eu.

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