Perrengues de Imigrante – Parte I

Não é preciso ter morado fora do país para saber que, independente de para onde você vá, existem diferenças físicas, culturais, linguísticas e várias outras com as quais nos deparamos mais ou menos frequentemente.

Quando estamos visitando um país novo, essas diferenças costumam ser interessantes, legais e divertidas e muitas vezes viram boas histórias de viagem. Mas quando estamos morando, ou tentando fixar residência, essas diferenças podem se tornar enormes dores de cabeça.

Eu acredito que você não pode dizer que morou em um lugar sem que tenha tido que abrir uma conta no banco, usar o sistema de saúde ou regularizar sua documentação. E hoje eu quero falar, ou nesse caso escrever, sobre esse último tópico, mais especificamente sobre tirar carta de motorista.

Antes de ter que passar por isso, eu nunca tinha pensado nas diferenças dos processos para tirar carta de motorista em outros países. Tirei minha carta no Brasil quando eu tinha 18 anos e sempre que tinha que dirigir fora do Brasil durante uma viagem eu pude usá-la.

Em 2016 chegamos nos Estados Unidos e descobrimos que lá, a carta de motorista, além de ser obrigatória para dirigir, também é o principal documento de identificação, como se fosse um RG, por isso corremos para conseguir a nossa.

Fomos até o departamento de trânsito e marcamos a nossa prova teórica, estudamos em casa usando os pdfs do site oficial, no dia da prova chegamos lá no horário marcado, um funcionário conferiu nossa identidade, fizemos a prova em pé mesmo, quando acabamos o resultado apareceu na tela e já foi para o sistema deles. Saímos da salinha e fomos embora. Eu reprovei na primeira prova, então já marquei a segunda para dali a cinco dias, fiz a prova novamente, passei e já marquei a prova prática.

Na época não sabíamos que lá nos EUA a prova prática é feita com o seu próprio carro, foi uma pequena confusão, mas fomos com um carro alugado, fizemos o teste, passamos e já saímos com a carta de motorista na mão. Ao todo, esse processo deve ter levado um mês.

Aí chegamos aqui em Portugal, em Outubro de 2020, desconhecendo completamente o processo para regularizar nossos documentos. Como eu já contei aqui antes, nossa chegada foi toda conturbada, no meio da pandemia, um monte de coisas dando errado, então deixamos para ver a questão da carta de motorista em Janeiro de 2021, já que as nossas americanas venceriam só em março.

E foi aí que tudo começou. Descobrimos que havia um jeito de transferir nossas carteiras para cá, era só fazer um exame médico e mandar os documentos para o IMT, o departamento de trânsito daqui. Mas um dos documentos que eles pedem é uma carta oficial do país que emitiu o documento afirmando que ele é verdadeiro e com mais algumas informações. Para os documentos brasileiros, o consulado mesmo faz essa carta, mas no caso dos Estados Unidos teríamos que solicitar isso junto ao departamento de trânsito da Geórgia, que estava fechado devido ao Covid.

Um mês se passou, já era quase março, quando nossas cartas venceriam, e nada de conseguir o documento, então decidimos que era melhor que eu, que dirijo com mais frequência, tirasse a carta da forma tradicional, fazendo as provas. Como eu já dirijo há mais de 20 anos, imaginei que seria rapidinho pra fazer a prova teórica, depois a prática e já sair com o documento na mão.

Porém, aqui em Portugal, o processo tem que obrigatoriamente ser feito através das auto escolas, que nesse momento, em fevereiro de 2021, estavam todas fechadas devido ao covid.

O que não tem remédio remediado está, esperei até o dia 15 de março, quando as auto escolas estariam autorizadas a reabrir e fui até uma, que era perto da minha casa, para pedir as informações e possivelmente já sair de lá com a prova teórica marcada.

Não preciso nem dizer que isso não aconteceu, considerando que estamos em setembro e eu ainda não estou com a minha ”carta de condução” portuguesa em mãos.

O que a dona da escola, uma senhora loira, baixinha, que só usa a máscara com a nariz de fora e fuma sem parar, me explicou foi o seguinte: primeiro eu preciso pagar a taxa (uma fortuna diga-se de passagem), depois a escola vai pedir ao IMT para gerar uma licença para aprender em meu nome, ao receber essa licença eu preciso fazer o exame médico, com ele em mãos eu posso começar a marcar as 32 aulas teóricas que eu preciso fazer antes de poder marcar a prova, tendo feito isso eles marcam a prova para mim, se eu passar posso começar a fazer as 16 aulas práticas obrigatórias antes que eles possam marcar a minha prova prática, concluído isso eu faço a prova e, se passar, espero minha carta chegar pelo correio. Naquele momento ficou claro que isso não aconteceria dentro dos 15 dias que eu tinha antes que vencesse o meu documento.

Como aqui, assim como no Brasil, tudo é muito flexível, expliquei para a mulher que eu já dirigia há mais de 20 anos, que não fazia sentido fazer todas aquelas aulas e tals e ela me disse que então eu poderia fazer umas cinco aulas e ela registraria a minha presença nas aulas restante, o que demoraria uns dois meses e depois marcaria a prova para mim.

Não muito satistefeita, mas entendendo que esse era o melhor dos cenários, aceitei. Pedi para ela solicitar a minha licença para apender para que eu começasse o mais rápido possível.

Passados três dias sem nenhuma notícia eu liguei na auto escola pra saber se a licença para aprender já estava lá. A recepcionista, uma moça simpática de uns vinte anos, deu uma risadinha. Ela me disse que o prazo mínimo era uma semana, não tinha máximo. Esperei pacientemente até que, depois de duas semanas, ela me ligou me avisando que a licença tinha chegado e que eu podia passar lá para buscar. Fui na mesma hora. Ela imprimiu um pedaço pequeno de papel azul, com um carimbo oficial do IMT, dobrou em três partes e me deu, me avisando para guardar com muito cuidado porque era muito difícil conseguir outro. Quase coloquei num cofre.

Era chegada a hora do exame médico. Perguntei à recepcionista como funcionava e ela me disse para voltar lá no dia seguinte com 30 euros em dinheiro. Passei num caixa eletrônico e fui pra casa, ansiosa pra resolver logo esse assunto, mas sem poder fazer nada. Voltei com o dinheiro no dia seguinte, entreguei à dona da escola que, em retorno, me entregou um recibo e se despediu. Perguntei do exame médico e ela me disse que estava feito, que era só isso.

Já estávamos no fim de abril e eu já sem forças pra discutir, só pedi pra marcar minha primeira aula teórica, que aconteceu no dia seguinte. Nem vou entrar em detalhes aqui, mas o resumo das aulas é que a prova tem 30 questões e você pode errar até 3, mas que ela é cheia de pegadinhas e eles fazem de propósito pra você não passar de primeira e ter que repetir (e pagar novamente, claro).

Em duas semanas consegui fazer cinco aulas teóricas e pedi então que ela organizasse pra que eu pudesse fazer a prova. Passados dois meses, lá pelo final de Junho, prazo que ela tinha me dado, eu liguei pra perguntar como estava indo e ela me disse que ia tentar marcar a prova. Não entrarei nos pormenores, mas eu fiz a prova ontem, dia 20 de setembro. Lembrando que eu me inscrevi na auto escola no dia 15 de março.

Mas não pense que esse post acaba aqui, vamos à prova.

Logo após a marcação da minha prova surgiu um outro compromisso muito importante, em Lisboa, no mesmo dia. A prova estava marcada para às 8:30 e o compromisso para às 11:15. Como o tempo máximo para fazer a prova é 30 minutos, eu pensei ”eu faço a prova, saio no máximo às 9, ou talvez 9:30 se algo atrasar, venho pra casa, troco de roupa e saio às 10:15 para Lisboa, com uma hora de antecedência, tempo mais do que suficiente para chegar lá, dá até pra tomar um cafezinho e comer um pastel de nata antes”. Tudo certo.

Na semana passada recebi um sms da auto escola pedindo para eu chegar às 7:30, uma hora antes da prova. Achei legal, imaginei que eles queriam garantir que estava todo mundo pronto pra que começasse bem no horário.

Passei a semana passada inteira estudando intensamente para essa prova. Existe um site aqui que simula a prova, com todas as questões que já caíram e que eu fiz obcecadamente em todo tempo livre que eu tinha. Aprendi muitas coisas, mas me irritei com muitas outras, não entendo porque eu preciso decorar a velocidade máxima permitida para um trator com reboque de 7500kg em uma via não urbana, mas enfim, me preparei como pude.

Ontem acordei às 6 da manhã para dar uma última revisada nos testes e às 7:30 Paulo Eduardo me deixou na porta da escola. Já estavam lá mais dois rapazes que não tinham nem nascido quando eu tirei a minha primeira carta e uma mulher da minha idade claramente ansiosa, além da dona da escola e um dos instrutores.

Cumprimentei todo mundo, eles conferiram meus documentos (falaram mil vezes que precisava levar a identidade e a licença pra aprender) e o instrutor então falou “vamos” e todo mundo começou a entrar no carro. Não entendi nada, achei que eles tinham confundido e marcado a prova prática ao invés da teórica. Fui falar com a dona da escola, que estava fumando, e ela rindo me explicou que a prova não era ali, era em um dos prédios do IMT, que ficava a uns 20 minutos dali.

Imediatamente comecei a recalcular meu tempo, se a prova começasse às 8:30, a gente sairia no máximo às 9, vinte minutos pra voltar, às 9:30 (com folga) eu estaria na auto escola e daria tempo de me trocar e ir pra Lisboa.

Fomos no carro conversando e um dos rapazes falou que ele faria a prova combinada para carro e moto, ao que o instrutor respondeu que entåo teríamos que esperá-lo já que a prova dele levaria 40 minutos e não 30 como a nossa. Novo cálculo mental, estava ficando mais apertado, mas ainda dava tempo.

Depois de meia hora chegamos ao local. Já tinham umas pessoas esperando na porta, mas o prédio ainda estava fechado. Pontualmente às 8:30 a porta se abriu e um cara saiu de lá. Já agradeci mentalmente pela pontualidade, feliz de que tudo daria certo.

O cara da porta sacou uma folha de papel e começou a chamar nome por nome, a cada nome que ele chamava ele pedia para a pessoa higienizar as mãos, subir a escada e ir para a sala de espera. Uma pequena demora que eu não tinha previsto, mas éramos só 14 pessoas então não precisei recalcular.

Eu fui a número 13, fiquei até feliz, achei que era um número de sorte, passei o álcool gel na mão e subi para a sala onde já estavam quase todos os outros esperando. O número 14 veio em seguida e logo atrás dele o cara da porta, que apareceu com outra folha de papel. Ele fez mais uma chamada para garantir que ninguém tinha se perdido e começou a ler algumas regras como: celular tem que estar desligado, não pode levantar antes de acabar, não pode olhar pro computador do amiguinho e coisas assim. Nisso tudo já tinham se passado quase 20 minutos das 8:30 e eu comecei a ficar um pouco tensa.

Após ler as instruções todas ele começou a chamar todo mundo novamente. Para cada pessoa que ele chamava ele dizia o número do computador em que ela devia se sentar e avisava para guardar as coisas em um armário no fundo da sala. Depois do que pareceu duas horas estávamos finalmente todos sentados.

Eu achei que agora ia, era fazer a prova e pronto. Não, não era. O cara da porta, que agora estava atrás de uma mesa, pediu pra todo mundo deixar a identidade e a licença para aprender em cima da mesa e foi passando de mesa em mesa conferindo os documentos e pedindo que assinássemos um papel. Pronto, agora sim! Não, ainda não. Começaram agora as instruções para a prova. São 30 perguntas, cada uma com opções, só tem uma resposta certa, bla bla bla. Às 9:00 começamos a prova.

Diferente dos Estados Unidos, aqui tínhamos que esperar os 30 minutos sentados, idependente do tempo que levássemos para acabar a prova e, nesse caso, ainda esperaríamos mais 10 porque um rapaz ia fazer a prova mista para carro e moto.

Acabei a prova, revi tudo uma vez, duas, três, já não tinha mais o que rever e ainda faltavam 15 minutos pra acabar. Fiquei lá pensando na vida, meditando, dando uma espiadinha no que os meus vizinhos de computador estavam fazendo atè que a tela travou e apareceu uma mensagem de tempo esgotado. A partir daí ainda tinham os 10 minutos extras para o solitário da prova mista. Enquanto isso, o cara da mesa, antigo cara da porta, passou por cada um de nós recolhendo nossas licenças para aprender e espalhando-as em sua mesa.

Às 9:40, quando o tempo acabou para todos e todos os computadores travaram o cara da mesa avisou que agora sairiam os resultados. Eu olhei pra minha tela esperando ver um “aprovado ou reprovado”, mas não vi nada, só ouvi um barulho de papel saindo da impressora. Sim, os resultados saem em papel.

O cara da mesa explicou que ele ia chamar um por um novamente. Quem passou receberia a sua licença para aprender carimbada e assinada e quem não passou receberia ela em branco com um relatório de erros para estudar para a próxima vez.

E ele começou a chamar um por um. “Margarida, errou só duas, parabéns” e lá ia a Margarida buscar sua licença carimbada e assinada pra ir embora. “Duarte, não foi dessa vez” e lá ia o Duarte buscar seu relatório e sua licença em branco. E assim foi até chegar a minha vez, eu era a penúltima. Já tava extremamente nervosa, não porque mais da metade da sala tinha reprovado, mas porque já eram quase 10 horas e eu ainda tava lá. “Dina, uma errada, parabéns”, e lá fui eu que nem um raio pegar minha licença e correr pra ir embora.

Nessa hora eu não conseguia nem comemorar que tinha passado, me joguei dentro do carro e falei pro cara que eu precisava chegar urgente na auto escola. Liguei para Paulo Eduardo, que iria me buscar, e falei pra ele estar lá em 20 minutos, às 10:20, e que ele teria que voltar pra casa a pé porque eu teria que ir direto de lá pra Lisboa, com a roupa que eu estava usando mesmo, que não era apropriada para o compromisso, mas era o que dava pra fazer.

No caminho para a auto escola pegamos um trânsito fora do normal, perguntei se alguém sabia o motivo e todos me disseram que estava tendo greve de ônibus e todo mundo tava indo de carro pra Lisboa por isso aquele trânsito pra acessar a ponte (eu preciso atravessar o rio Tejo pra chegar a Lisboa e essa ponte é praticamente minha única opção).

Cheguei na auto escola nervosíssima, Paulo Eduardo me deu as chaves do carro, botei o endereço no Waze e a ponte estava realmente parada, quase duas horas para chegar a Lisboa e eu tinha apenas 50 minutos. Mas o Waze me deu um caminho alternativo que demorava 52 minutos, eu ia chegar atrasada, mas podia ligar e explicar e tudo bem, dois minutos não é nada.

Saí dirigindo que nem louca, tentando pensar que caminho alternativo era aquele, imaginei que fosse uma acesso à ponte com menos trânsito ou algo assim. Tava com tanta pressa que só fui, não olhei o caminho inteiro no aplicativo.

Eis que, 20 minutos depois, eu parei em frente ao rio, em um lugar de onde teoricamente sairia uma balsa para Lisboa. UMA BALSA!!! E a balsa nem estava funcionando. Dei um grito no carro e me desesperei, não tinha mais o que fazer, eu não iria chegar a tempo nem de helicóptero.

Liguei pra pessoa, expliquei a situação e, felizmente, ela foi compreensiva e aceitou falar online.

Passada toda essa tensão eu finalmente consegui comemorar que passei na prova, mas nem consegui ligar pra auto escola ontem pra saber da prova prática, tô com um pouco de medo.

E é por isso que eu digo, ainda bem que aqui o vinho é barato.

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