Levei muitos anos para conseguir contar essa história. Aliás, levei muito tempo para entender quão profundamente ela me marcou. Mas eu sinto que, apesar de ser a minha história, ela não é só minha. Ela é de muitas outras mulheres que talvez precisem saber que não estão sozinhas.
Casei em 2015, com 35 anos e em 2016 nos mudamos para os Estados Unidos. Em setembro de 2016 decidimos tentar engravidar e em dezembro do mesmo ano eu engravidei.
Lembro como se fosse hoje. Quem já tentou engravidar sabe como funciona, você calcula os dias e, quando a menstruação atrasa duas horas você já faz um teste de gravidez. Eu fiz meu teste em uma quinta-feira de manhã.
Estava perto do Natal, a gente tinha decorado a casa toda com uma árvore e vários enfeites. Na época éramos meu marido, eu e o Ralph, o cachorro que a gente tinha adotado há alguns meses. Seguindo a tradição americana, eu tinha colocado uma meia para cada um de nós três pendurada em uma prateleira (a tradição diz para pendurar em cima da lareira, mas o nosso apartamento não tinha uma).
Naquela quinta-feira eu coloquei mais uma meia bem pequenina pendurada na prateleira. O meu teste tinha dado positivo, eu estava grávida! Liguei para a minha mãe e contei pra ela, mas combinamos que não contaríamos para mais ninguém até que eu fizesse o teste no médico.
No sábado, decidimos passar o dia em uma cidadezinha a mais ou menos uma hora de onde morávamos, conhecida pelas suas decorações de natal. Colocamos o Ralph no carro e fomos. Mais ou menos na hora do almoço eu fui ao banheiro e vi que estava sangrando. Fiquei nervosa, mas entrei no Google e li que era normal um sangramento no começo da gravidez, então continuamos o passeio.
Na próxima vez que eu fui ao banheiro eu estava sangrando mais ainda e sabia que aquilo não podia ser normal. Voltamos correndo pra casa, e eu fui em um laboratório particular fazer um exame de sangue, que confirmou o que eu já sabia, eu não estava mais grávida.
Pelos níveis de HCG, o teste mostrou que eu estive grávida, mas havia perdido o bebê, provavelmente com quatro semanas. É tão no começo que muitas mulheres nem sabem que estão grávidas nesse período, mas como nós estávamos tentando e eu fazia muitos testes, eu sabia.
Fiquei arrasada, chorei sem parar, liguei pra minha mãe que também chorou. E assim passei o resto do final de semana em casa, chorando.
Nessa época eu estava trabalhando na área de HR Analytics e estava fazendo coisas incríveis, que eram referência para o resto da empresa. Na segunda-feira após esse final de semana terrível, eu tinha uma apresentação para uma executiva muito importante da empresa, que estava vindo de outro estado para conhecer o meu trabalho.
Acordei segunda de manhã inchada de tanto chorar, mas decidi ir trabalhar mesmo assim. Na época eu pensava que aquela reunião poderia me abrir muitas portas e que não adiantaria nada eu ficar em casa sofrendo por algo que não tinha solução.
Fui, arrasei na apresentação. Naquele ano eu ganhei um bônus excelente e, profissionalmente, algumas portas se abriram para mim.
Na segunda-feira a noite, chorando depois do trabalho, conversei com uma ginecologista brasileira, que me disse que abortos espontâneos eram muito comuns no começo da gravidez e que aquilo não seria problema para eu engravidar novamente.
Na terça-feira fui na minha ginecologista lá nos Estados Unidos, que me disse a mesma coisa. Falou para eu não ficar preocupada que aquilo era super normal, principalmente depois dos 35 anos e que eu podia continuar tentando engravidar sem problema nenhum.
Comecei a contar a minha história para algumas colegas de trabalho e algumas amigas e todo mundo me dizia que era normal, muitas já haviam passado por isso também e conseguiram engravidar depois.
E com isso eu segui a vida. Parei de chorar e de pensar naquilo. Continuamos tentando engravidar por mais um ano e meio, não conseguimos, então decidimos fazer a fertilização in vitro, que nos trouxe a nossa maravilhosa Lara, que hoje tem quase dois anos e é a criança mais perfeita para a nossa família.
Depois veio a pandemia, a loucura toda pela qual a gente passou, de ficar preso nos EUA sem trabalhar, ter que morar em vários Airbnbs e todo o stress do Covid e por isso eu decidi fazer terapia. Estava muito cansada, muito estressada, sem direção e achei que conversar com uma psicóloga poderia me ajudar.
Eu nunca imaginei que teria tanta coisa para falar e tantos assuntos para resolver. Por causa da terapia eu descobri que nunca fui feliz no meu trabalho, que tinha várias questões passadas não resolvidas, que carregava muitas culpas e várias outras coisas. Mas só recentemente esse assunto do aborto surgiu e veio como uma avalanche.
Eu perdi esse bebê em dezembro de 2016, a Lara nasceu em setembro de 2019 e eu só falei sobre esse assunto na terapia em abril de 2020. Foram três anos e meio tratando isso como algo que acontece com muitas mulheres, algo que não deveria me abalar.
Mas a verdade é que eu perdi um bebê. Perdi um bebê que eu queria muito e que eu já amava muito. Não importa que era cedo na gravidez, que eu só fiquei sabendo dele dois dias antes de ele ir embora ou que isso é muito comum. Aquele era o meu bebê e eu nunca me dei a chance de sofrer o luto de sua perda e eu nunca me dei conta da culpa que eu carregava por ter tratado aquele momento com tanto desdém.
Eu sei que todas as amigas que me contaram suas histórias e disseram que aquilo era normal só queriam me ajudar e me acalmar. Eu entendo que para os médicos aquele era somente um feto que não se formou corretamente e eu sei que muita gente passou por isso, mas aquele era o meu bebê.
Decidi chamar esse bebê de Stella. As vezes converso com ela e já pedi perdão por tê-la deixado de lado por tanto tempo. Ela agora sabe que eu penso muito nela e, mesmo não estando aqui nesse mundo, ela é importante para mim, ela é minha filha.
Já não carrego mais a culpa pelo desdém, já consegui me perdoar e isso me tirou um peso tão grande que eu nem consigo nem explicar.
Apesar de eu estar chorando ao escrever esse texto, eu não me sinto mais triste com tudo o que aconteceu, eu sei que não era hora de a Stella vir para cá e sei que aquele não era o momento de termos um filho na nossa família.
Quanto àquela apresentação para a executiva, foi um erro. Nenhum bônus ou reconhecimento merecia mais atenção do que o sofrimento e o luto que eu estava sentindo naquele momento.
E um dia, quando a Lara puder entender, eu vou contar para ela que ela tem uma irmã que não está aqui conosco, mas que se chama Stella e que está de alguma forma perto de nós.
O luto é diferente para cada pessoa, não quero aqui dizer que todo mundo tem que sofrer como eu ou se culpar por não sofrer. Quero compartilhar a minha história, um pouco por egoísmo, porque escrever me ajudar na cura, mas também porque pode ser que tenha alguém por aí que precise ler isto para saber que não está sozinha, que eu também estou aqui.
Peguei a caixa toda de lenços… 🥰🥰
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É comum? Sim, é. Conheço diversos casos, inclusive de gente mais nova.
É fácil? Nem um pouco. Muito pelo contrário! Ainda mais quando vem de um casal buscando o primeiro filho.
Cuide bem da sua pequena, mas para isso não precisa se esquecer da sua estrelinha.
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Texto emocionante e que me faz querer muito te dar um abraço.
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